sexta-feira, 25 de junho de 2010

A moda de ficar na moda!

Muita coceira! Quero coçar até sentir as unhas – gritavam algumas portuguesas naquela nau infestada de piolhos. Eram tantos que não se limitavam aos cabelos, mas desciam nas faces avermelhadas pelo sol equatoriano do Atlântico. Quem era alérgico ficava com a cútis empipocada. As unhas já estavam esfoladas, quebradiças e chegavam à carne. Proliferavam de tal modo os tais bichinhos que ninguém podia detê-los. Com certeza no continente europeu haveria procedimentos efetivos para tal infestação. Mas naquele lugar super populoso, sem conforto, sem higiene, faltando saneamento e água potável, ninguém tinha para onde correr. Dias e dias sob o sol escaldante, sem vento e sofrendo de privações, a estadia chegava à beira do insuportável. E as portuguesas desesperadas, sem saber o que esperar da nova terra e o que encontrariam no solo brasileiro, coçavam e coçavam aqueles cabelos em desespero durante a travessia do oceano. A situação era de: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. E não tinham para onde fugir. Para horror e indignação dos nobres a praga atingiu a todos. Seria desejo dos ilustres passageiros que os inofensivos insetos escolhessem apenas a classe dos serviçais que tinham cabeças menos limpas, menos perfumadas e com menores cuidados. Mas não foi assim que aconteceu. Afinal para essas pragas qualquer cabelo é um banquete farto. Brincavam sobre a pele entre os tufos de cabelo, pulando e mordiscando a cobertura da cabeça. Espalhavam-se pelo relevo, escorregando pelos fios em todo o revestimento: da testa à nuca. Todos sentiam a cabeça em chamas! Padeciam! Por certo os criados seriam o alvo da ira da princesa, suas filhas, as damas da Família Real, demais mulheres da Corte, etc., e sofreram fortes reprimendas e punições, mas praga é praga. Incontrolável. Não se sabe como começa. E essa tremenda coceira tomou conta do navio até que a solução veio do almirante. Ou será que de algum farmacêutico a bordo? As unhas já estão nas carnes e o couro já sangra! Para acabar com a praga, temos que acabar com seus ninhos. E as portuguesas sem entender, sob o olhar dos oficiais que franziam a superfície da testa: Ordeno que seja cortado o cabelo de todos, sem exceção! Que sofrimento. Qual dor era pior? Perder a sedução das suas madeixas ou livrarem-se da comichão? E a vergonha? Sem cabelo evidenciou-se a crosta da cabeça em feridas. Como ancorar na nova terra Brasil sem cabelos? Precisamos de lenços de seda e turbante para a princesa! Bradavam as nobres unânimes à ira da princesa. Os homens atiraram suas perucas ao mar e cortaram as barbas, também lugar de esconderijo para os bichinhos. Que humilhação! As mulheres que se dirigiram ao porto, ávidas por novidades européias, cegas de curiosidades, não notaram o constrangimento marcado na tez enrubescida das nobres. Acreditaram que os lenços e os cabelos bem curtinhos eram a mais nova moda do além mar. E entusiasmadas com os turbantes nas cabeças da realeza recém chegada, dispararam para se deixarem igualmente carecas: É moda, é moda; corte tudo que quero ser chic como a princesa!

Ganho secundário

Talvez Violeta não tenha amigos pela impossibilidade de comunicação. A garotinha já está acostumada com discriminação e parece não sentir a falta de crianças. Basta-lhe correr na praia, sentir o cheiro do mar de Boa Viagem e ficar na oficina do avô organizando sua coleção de tocos de lápis de cor. Seus pensamentos são sua maior companhia. E como gosta de subir naquela goiabeira do quintal... Lá é o seu observatório e lugar de indagações. Sempre leva duas ou três bonecas e enquanto lhe faz tranças observa tudo que se passa na rua; sente-se grande, poderosa. Pode espiar o gestual da fofoca das vizinhas da rua do lado, o cachorro rasgando o jornal que o entregador acabou de atirar da bicicleta, o verdureiro chegando com um troço estranho na boca que parece um funil grande. Pra que será que serve esse treco? Ele encosta na boca, logo depois tira e daí aparecem pessoas. Igual o homem do algodão doce. Por quê? Mas apesar da curiosidade ela não faz todas as perguntas ao seu avô. Prefere guardar como charadas e ir decifrando aos pouquinhos.
Hoje ela acordou animada, gosta de dias de vento, é quando os moleques saem para soltar pipas. Daquela altura da goiabeira, escondida entre os galhos ela se sente grandiosa quando só ela sabe onde de fato uma pipa caiu. Esta hora é a mais divertida. Sente-se detentora de um saber que não “pode” comunicar. E se diverte na vingança de saber, só ela, quando um grande cachorro de boca aberta está do outro lado do muro pronto para latir ou morder os intrusos. Ela pode ver tudo com seus olhos alertas! Só desce da árvore quando lhe fazem um sinal. Agora é hora de tomar banho. Que menina tranqüila, fica um tempão lá em cima, tadinha – comenta a empregada. Realmente ela é calma, esquece da vida enquanto desenha sobre o vidro embaçado de vapor.
Depois do almoço ela tem uma tarefa especialmente chata, hoje. Seu avô vai receber compradores e ao invés de ajudá-lo nas cerâmicas – ela tem muita habilidade e prazer em manusear a argila - terá que brincar e distrair as crianças. Dim dom, chegaram. Violeta sabe o que é ficar roxa de raiva, cerra os punhos quando tem medo ou raiva. Já lhe explicaram que seu nome pode significar roxo ou lilás, que é a cor do sorriso, ela tem raiva e vai encontrar um jeito das crianças ficarem brancas de medo. Antes do avô ir tratar de negócios com o casal, ele apresenta o quintal para as crianças e faz sinal para que a neta ofereça goiabas a elas. Era tudo o que a pequena queria: uma boa idéia. Ela sobe nos pequenos galhos e alcança goiabas com bichos e oferece às crianças que reclamam na primeira mordida: que nojo! Você não sabe pegar uma boa? Parecendo resignada com a ordem das crianças, faz sinal para esperarem e astutamente sobe entre os galhos e de lá passa a atirar diversas goiabas sem conseguir acertá-las. As crianças riem dela, muito, e muito, e gargalham... Violeta enfurecida enche a mão com as maiores goiabas, aquelas molinhas já comidas pelos passarinhos, azedas com um cheiro que dá nojo, cheiro de coisa passada. Ela preferia atirar aquelas verdes e pequenas que ardem na pele, mas as moles e podres são melhores, elas espatifam. Com uma pontaria certeira enfim, alcança em cheio as crianças que correm sujas e melecadas para dentro da casa gritando pelos pais. A mãe consolando-as explica a dificuldade da netinha do senhor João de entender as brincadeiras. Nesta hora a menina entra com ar de ninguém me entende... E senta-se para assistir um desenho.

Frase secreta: Parece, mas não é.


Escrevi esse texto baseada na personagem criada por Marion Hesser, no nosso curso de escrita criativa na Casa do Saber, sob a orientação da professora Noemi Jaffe, neste mês de junho.
NOME: Violeta
PROFISSAO: -
IDADE: 7 anos
FAMILIA: mora com o avô em Recife.
CARACTERISTICAS: alta para idade que tem, olhos alertas e cabelos escuros. habilidosa com as mãos, consegue correr muito rápido, não tem amigos.
DOENÇA: surdez
MANIAS: desenhar durante o banho, com os dedos, na janela embaçada de vapor / fazer trança em suas bonecas / colecionar tocos de lápis de cor
SONHO: ser arquiteta
HABITOS: apontar lápis de cor / treinar a caligrafia
TIQUE: cerra os punhos quando sente medo

sexta-feira, 18 de junho de 2010

No trampolim

Entrei para um curso de escrita criativa. Esta é minha primeira lição.
Restrições: não pode conter a palavra "que", nem o verbo ser. Tem que ser uma descrição sobre o que antecede o pulo de um trampolim. Este trampolim não pode ser metafórico.
Boa leitura!

Não imagino como vim parar aqui em cima. Maldita aposta! Onde estava meu juízo quando me propus a pular caso perdesse? Por certo me forçariam a cumpri-la de qualquer modo. E agora estou aqui com meus dedos já para fora da tábua, enquanto as palmas dos pés escorregam de tanta água. Qual água poderia molhar a tábua, aqui no alto? Suor, evidentemente... Outra coisa está quase saindo: meu coração quase pulando fora do peito. Pensando bem não cogitei a possibilidade de perder essa aposta. Só contei com a chance de ganhar. Afinal em uma aposta se contássemos com as duas chances (vitória e derrota) talvez pensássemos melhor e nem nos arriscaríamos. A aposta em si tem um poder: alguém sempre paga. Se a aposta fosse gente, ela seria a ganhadora, em síntese. Nossa quanta bobagem na minha cabeça! Defesas, defesas, defesas diante desta “beiradinha chacoalhante”. Por isso me enrolo em discursos mentais, verdadeiras caraminholas elucubrativas. Mas agora já está feito! Estou aqui e devo encarar minha sentença. De morte? Por certo não. De vida? Talvez se puder aproveitar o pulo, a liberdade do meu corpo flutuando no ar, despencando como num abismo ao encontro de um “solo” fluido e fresco. E não é um bom pensamento esse? É! Achei a solução. Se eu inclinar a minha cabeça um pouquinho pra frente e soltar os ombros, daí talvez o peso dela puxe o resto e eu despenque gostoso sem perceber. Só preciso lembrar de levantar a mão e tampar o nariz antes de cair na água. Terei tempo de pensar nisso? Eu não podia ter perdido aquele jogo...
Agora me vejo aqui aflita nessa experiência ridícula e solitária, dependendo somente de uma coragem inexistente, ainda. Volto para a idéia de despencar solta a favor da gravidade; esta experiência inédita é demais desafiante. Não aguento mais relutar aqui, mas se topei essa aposta é porque de fato queria desafiar meus limites. Devo ter perdido essa aposta de propósito. Um belo boicote à minha razão; em sã consciência jamais me daria ao luxo de me atirar daqui. Os gritos da plateia interrompem essas últimas frases mal balbuciadas e clamam o cumprimento do trato. Então vamos lá. Sobe o frio na barriga e para baixo quando olho tudo se embaralha, meu estômago gira e um nó na garganta aparece quase me sufocando. Coração e ar brigam pelo espaço da laringe. Tortura tem preço e masoquismo tem medida. Chega, lá vou eu, encolhida não consigo contar até três. No número dois alguém me empurra.